Dia Amarelo
O dia nasce azul, mas da janela da minha tenda é amarelo.
Amarelo. Arthur acorda, olha pela janela, e não consegue deixar de pensar na cor amarelo. Na deliciosa obra de ficção de Douglas Adams, Arthur vivia aquele que seria o último dia da Terra, momentos antes de uma gigantesca escavadora amarela demolir o planeta para construir uma auto-estrada intergaláctica. Para ele, era altura de partir. Para nós, da nossa janela, o amarelo dá-nos os bons dias e não um “Adeus”, feito de um manto de tremocilha no planalto de Espichel.
As coloridas flores já enchem os campos, o sol brilha mais quente e o cheiro no ar é doce. A primavera chegou. A cada dia que passa ganhamos três minutos de sol, devolvendo os casacos quentes ao armário.
Os sonhos das viagens começam a ganhar nomes e os 4x4 — artilhados das boas ideias confeccionadas durante a pandemia — sentem-se prestes a arrancar, mesmo que o destino seja curto. A ressaca do quilómetro pelo trilho invade os aventureiros.
A muita vontade de sair nestes dias atípicos, aliada às inseguranças do maldito vírus, torna o desejo intermitente quando pensamos na próxima aventura.
“O Mar está fechado”
Não seria longa, a viagem. Havia tempo que não íamos ao cabo Espichel, talvez anos. Amanheceu um lindo dia de azul no céu, temperatura amena de primavera e uma vontade incalculável de caminhar na natureza. Respirar bem fundo o perfume das flores que esta estação multiplica por todos os campos.
Connosco, carregámos Fronty, a leve Front Runner, saudosa também ela por um bom passeio às cavalitas de uma viatura qualquer. —”Tirem-me desta garagem.” — lamentava-se Fronty. — “Estou há meses aqui fechada, sem um único raio de sol”.
A escolha para chegarmos recaiu por um trilho encontrado numa dessas páginas para overlanders e amantes do todo-o-terreno. Ao aproximarmo-nos da estrada principal vimos que estava vedada por manilhas, impedindo a passagem de qualquer veículo. Para evitar as habituais concentrações de multidões junto ao Santuário de Nossa Senhora do cabo Espichel, a estrada foi cortada com a re-introdução do estado de emergência nacional. Faltava apenas ali, sobre aquela barricada, um cartaz a dizer — “O mar está fechado. Volte mais tarde.”
A vantagem das pickup é que não se intimidam com terras lamacentas e esburacadas. Enquanto os demais invertem a marcha, nós mergulhamos no primeiro caminho que nos apontava o destino idealizado.
Cruzamo-nos com duas motas que por ali também se desafiavam no pequeno trilho repleto de pedras. O amarelo de uma plantação de tremoceiro obrigou-nos a parar, não fosse esta uma das nossas cores preferidas. Sem estragar o cultivo, mas próximos, decidimos abrir a tenda e sonhamos com um acordar florido enquanto bebíamos um café expresso.
Ao longe observamos a imensidão tranquila do Atlântico enquanto se adivinha o som familiar do diesel a aproximar-se.
Podia ser uma Peugeot 504 Renforcé ou um UMM, apostámos entre nós.
Por detrás da mata arbustiva, surgem os faróis do jipe português mais famoso, com dois homens lá dentro. O condutor, calmo e sereno, revela ser o dono da terra dos tremoceiros... Parou. Trocamos umas ideias sobre o que estaríamos ali a fazer. Com a promessa que não destruiríamos a florida produção, segue viagem lentamente no caminho acidentado, antes de desaparecer por detrás de outra moita.
(excerto)