De Nenúfar em Nenúfar
"Neste bailado, somos nós o hipopótamo que, em cada salto, molha o delicado pé nos rios de Portugal, como se cada um fosse um nenúfar."
"Imponderável: significa “sem peso”, ainda que a utilizemos com frequência para nos referirmos ao que não planeámos ou antecipámos.
Um pouco como o hipopótamo desta história que se torna leve como uma pena, também nós decidimos aceitar o que acontecerá no dia seguinte, sem planos, antecipações, ou expectativas. O grande desígnio desta viagem é conhecer melhor os nossos rios, em Portugal — como se põe o Sol em cada um, que fauna os habitam e como as gentes os vivem.
“No meu tempo...”
Em miúdo, viajei e aprendi muito ao folhear as páginas das edições antigas do Almanaque Lello, amontoadas numa divisão escura, onde cada leitura começava com um valente sopro para enxotar o pó da capa. O propósito desta publicação parecia ser reunir conhecimento nas mais variadas áreas de vida e da ciência, cobrindo tópicos tão díspares como os maiores transatlânticos da actualidade até ao funcionamento do olho, passando pela botânica. Quando devolvi os almanaques à escuridão, comecei a encontrar no mundo o que lera nas suas páginas. Enquanto cronista de viagem, depressa me apercebi como é importante saber, pois para escrever sobre o que vira e compor quadros verosímeis e envolventes, teria de conseguir reconhecer o que me vai aparecendo no caminho. Poucas coisas caracterizam e distinguem tão bem um local quanto árvores ou plantas. Percorrendo os várias corpos de água portugueses — barragens, lagos, cascatas, rios, ou mesmo oceanos — olhamos em volta e são elas que desenham o quadro que pintamos. — “E que diferença faz?”, perguntam. Experimentem estacionar a moto em viagem debaixo de uma “árvore” que era afinal uma acácia, e interiorizem o ensinamento enquanto reparam os furos no pneu.
No mercado actual, as palavras têm perdido valor — para quê usá-las para descrever um local, quando posso tirar uma fotografia e partilhá-la em poucos segundos? Ainda que valha mil palavras, a cada fotografia que tiramos, empobrecemos a língua. Tudo pode ser reduzido a uma mão-cheia de termos —“árvores”, “vegetação”, “silvas”. Por isso não se estranha numa conversa de adolescentes que a palavra “tipo” surja a toda a hora. — “Tipo uma cena para a água, ‘tás a ver?” chega assim para descrever um cântaro, mas também garrafas, garrafões, cantis, ânforas e um sem-fim de vasilhame... Perpetuar-se-ia uma preguiça de aprender e desenvolver vocabulário, não fora haver velhinhos como eu que teimam em começar frases por “No meu tempo...”
“O Grande Almanaque Fluvial EREMITA”
Um bom almanaque seria um forte candidato a fazer companhia — se não mesmo a substituir — a Bíblia na gaveta do hotel. Comecemos aqui a nossa edição do GAFE — Grande Almanaque Fluvial Eremita — na esperança que acabe por merecer um lugar na bagagem do viajante em Portugal, já que a gaveta da mesinha de cabeceira está tomada.
Tendo o leitor dias para gastar ao ar livre no Verão quente, há um elemento que refresca só de pensar — a água. Usamos o dedo no mapa de Portugal como numa sessão espírita sobre um tabuleiro “Ouija”, teimoso a parar sempre que encontrar a palavra “rio” ou “barragem”, fugindo da grande massa de água que envolve a costa onde toda a gente parece estar. Afinal de contas, esta é uma obra concebida a pensar no Eremita."
(excerto)